A menina que resgatava almas
Quando a Morte de "A menina que roubava livros" visita o "Holocausto Brasileiro"[i].
“● SIGNIFICADO DO DICIONÁRIO MICHAELIS ●
Morte: Ato de morrer;
fim da vida.
Cessação definitiva da
vida para o ser humano; falecimento, passamento, trespasse.
Ser imaginário
representado por um esqueleto humano que carrega uma foice.
Passagem da alma, que
estava ligada ao corpo material, para o plano espiritual.
Intensa angústia.” [ii]
Muitas pessoas acreditam que sinto
prazer em realizar o meu trabalho, que fico ansiando por uma alma nova e que gosto
do que faço. Ninguém reconhece o peso diário, as mazelas e
angústias que enfrento. A maioria me imagina como uma ceifadora de vidas ou
como a imagem descrita no dicionário “um esqueleto com uma foice”. Então preciso esclarecer:
“● UMA VERDADEZINHA ●
Eu não carrego gadanha nem foice.
Só uso um manto preto com capuz quando faz frio.
E não tenho aquelas feições de caveira que vocês
parecem gostar de me atribuir à distância.
Quer saber a minha verdadeira aparência?
Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo.” [iii]
Gosto mais de me imaginar como alguém
que colhe os frutos maduros de uma árvore chamada vida. Busco colher as almas
no ato em que elas despencam do pé, às vezes me adianto e aguardo, às vezes me
atraso, porém raramente alguém se safa. Antes de mais nada preciso dividir um
segredo: eu evito olhar para trás, assim, quem sabe, não seja tão
penoso.
Estive muito atribulada em vários
períodos na história da humanidade, extermínio de tribos indígenas inteiras,
presenciei duas guerras mundiais e muitas outras guerras, desnutrição e pestes
que assombraram muitos países, especialmente os países do "terceiro mundo".
Foi em um destes países em que me
deparei com um lugar assombroso, um lugar em que a noção de humanidade passava
distante. Sem contar os campos de concentração da Segunda Guerra, este era indubitavelmente
o local em que eu menos apreciava meus afazeres.
As primeiras vezes em que havia “colhido
almas” naquele hospital as cores cintilavam entre cinza claro e azul prussiano,
havia um silêncio ensurdecedor. Após décadas, em uma manhã com o céu alaranjado, laranja podre e escuro, fora diferente. Lembro-me de sentir um
odor forte de urina e a cada segundo que me aproximava os
corpos sem vida se multiplicavam.
Peguei pelas mãos o primeiro
corpo, um menino com seus vinte e poucos anos, franzino e nu. Seus olhos estavam negros de sangue e seu corpo gelado, mesmo tendo falecido há
poucos minutos. Olhei mais a fundo e minha vista alcançou dezenas de homens em condições
precárias, com suas costelas à mostra e uma palidez assustadora, seus corpos
estavam entrelaçados e rígidos. Todos mortos.
O ar era pesado, fétido e melancólico, pude
ouvir sussurros cortando o silêncio, vozes confusas e com pouco fôlego. Suas
súplicas eram diferentes do usual, ninguém ali chamava por mim, pelo contrário,
eles de uma forma peculiar clamavam pela vida. Este fora meu primeiro dia, de
tantos outros, naquele Hospital infernal chamado Colônia de Barbacena.
Minha visita ao hospital se tornou
cotidiana: dez, quinzes almas eram removidas por dia. No início, a maioria
provinda de homens e mulheres sem história, sem precedentes e muitas vezes
confusos, pois não compreendiam o motivo de estarem ali. Nenhum deles ansiava
pela minha chegada, porquanto, em seu íntimo, sabia-se que ali não existia vida. Em
pouco tempo era eu também a ceifadora de crianças.
Em uma das minhas passagens, o céu
se tornou bruscamente verde fluorescente. Minhas vistas estremeceram quando me
deparei com o seu corpo miúdo, a menina de 13 anos, que outrora saboreava seus picolés de abacate, seus favoritos, estava entre suas próprias fezes, um sangue grosso e preto expelido
por suas entranhas. Quando a tomei pelos braços senti sua alma leve, porém algo
me impedia de ir embora, uma outra alma – ainda menor do que a dela – segurava em
meu manto. Mãe e filha estavam unidas pela eternidade.
Ao longo dos anos, foram mais de
60 mil almas resgatadas naquele local. Eu não as colhia como as almas da árvore
da vida, elas eram anjos perdidos, seres iluminados e incompreendidos pela
escuridão que resvalava na sociedade. O “hospital” refletia a parte mais perversa, decadente e sem escrúpulos do ser-humano.
Ainda hoje encontro essas almas com
marcas indeléveis, pinceladas de cobre. Recolho suas almas cordialmente e as afago enquanto as levo comigo. A cor do céu mescla cores e tons, do branco leitoso ao chocolate. Ao menos ao fim, adocico suas existências e acalento
suas angústias.
● UMA NOTA NECESSÁRIA ●
O ser humano conseguia
me assombrar cada vez mais.
[iii]
ZUSAK, Markus. A menina que roubava
livros. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007.