Mais um...

Meus pais deviam estar inquietos para saber o gênero do seu terceiro filho, embora eles já tivessem uma menina e um menino e tendo em vista que eles haviam vivenciado as duas faces da moeda, talvez não fosse de suma importância o gênero. No ano em que nasci, 1985, os ultrassons não deviam ser muito confiáveis, contudo, ainda assim, uma palavra dita enchia mamães e papais de esperança e de expectativas de todo um futuro a ser desenhado: menina ou menino.
A partir disso quartos se transformavam em rosa ou azul (ou em suas variações mais óbvias: verde ou lilás), roupas neutras davam espaço para as “cores” de menina ou menino e de prontidão todos os brinquedos eram direcionados para o “sexo da criança”: boneca ou carrinho.
Enfim as palavras pronunciadas aos meus pais foram: é uma menininha! Ali, naquele momento, toda a minha vida deve ter sido arquitetada, possivelmente a minha carreira, meu casamento, meus filhos... refletindo os sonhos não concretizados dos meus pais, lá estava eu: uma menina cabeluda e de olhos fechados, ainda sem nome de batismo, mas cheia de histórias para viver.
Não vivíamos em uma condição financeira favorável, o país passava por mudanças drásticas e as cores que o mundo ditava não estavam disponíveis, por isso herdei do meu irmão algumas roupas e da minha irmã alguns brinquedos e, desta forma, possivelmente, já quebrava alguns paradigmas com poucos dias de vida: a menina de grandes laços na cabeça que vestia azul.
Em nossos primeiros anos de vida não sentimos o fardo do gênero, não sentimos as diferenças que a sociedade impõe para cada sexo. Mas pouco a pouco tudo vai se transformando e, sem percebemos, nós mulheres, nos tornamos objetos... viramos moldura de um quadro, adorno de fotos e produtos em exposição.
Lembro-me da primeira vez que ouvi “fecha as pernas, você já é uma mocinha” ou “tem que se comportar quando usa saia”, máximas que toda menina já ouviu em sua vida. Ou quando, em um dia de calor infernal, não pude ficar sem camiseta como os meninos.
Meu irmão e eu tomávamos banhos juntos, lutávamos Karatê e eu não havia percebido o fatídico “falo” que Freud tanto escrevia. Não nos víamos como diferentes por um período, até as diferenças começarem a aparecer. Até não podermos mais tomar banho juntos, até as brincadeiras serem totalmente segmentadas, até o azul não ser uma cor muito aceitável em meu guarda-roupa.
Aos cinco anos me deparei com a maior diferença que existe entre homens e mulheres, ou, no meu caso, homem e criança. A diferença de poder e força que não havia conhecido, a vulnerabilidade frente a violência, frente a impotência, o silêncio. O abuso sexual e psicológico que ocorrem assustadoramente em cada esquina com crianças e adolescentes, ainda em 2015 foram mais de 50 casos por dia.
Não por acaso que desde aquele momento minha percepção mudou, eu não tinha inveja do “falo” (querido Freud), eu tive ciência que homens e mulheres eram diferentes e ponto. Homens e mulheres evoluíram (?) durante sua história, foram moldados para cumprir papéis na sociedade (machista e misógina).
Não culpo meus pais e tampouco meu irmão, mas não é fácil viver na sombra de um filho homem. Há cada dia, enquanto crescemos, as diferenças vão se tornando mais e mais nítidas, e cada vez mais ferem nossas almas, e, muitas vezes, nos paralisam.
Sábados “perdidos” aprendendo a ser mulher, arrumando a casa, enquanto eles estavam se divertindo no futebol. Festas e aventuras que nos são proibidas, em nome do bem da “mulher de família”. Aprendemos simplesmente que as coisas são assim, ninguém sabe ao certo o porquê, somos reprimidas e não podemos lutar, ou melhor, não sabemos lutar. E nós, mulheres, passamos este fardo de geração para geração.
Reconheci as diferenças e as dificuldades de enfrentar um oponente mais forte e com mais poder, mas isso nunca me fez abaixar a cabeça, pelo contrário, eu tinha meu próprio forte, lá eu podia brincar de boneca, casinha, de bolinha de gude e peão. Podia jogar futebol comigo mesma enquanto pulava corda. Podia colocar minha roupa de Mulher Maravilha e defender os animais do quintal. Podia subir na árvore e comer goiaba. Podia fingir ser bióloga e treinar minhas formigas para sobreviverem à tempestade. Colecionava moedas de outros tempos, fazia origamis de tamanhos diversos, criava minhas próprias histórias com Lego. Lá eu era a mais forte, pois minha imaginação permitia tudo.
Infelizmente as distinções são cada vez mais evidentes, os cargos e salários, as posições de liderança e a participação na política, as dualidades enfrentadas no cotidiano (carreira x maternidade), as dificuldades da dupla jornada (trabalho + afazeres do lar).
Em pleno século XXI muitos direitos conquistados pelas mulheres ainda não são reconhecidos como legítimos, sofremos muitas violências no dia a dia embasadas que não estamos onde deveríamos estar: em casa, na cozinha, no tanque. Enquanto, na realidade, devemos estar exatamente onde quisermos estar.
Aprendemos desde cedo, e ainda é sombrio o motivo, que toda mulher é nossa inimiga... que não devemos confiar uma na outra, pois onde tem mulher tem fofoca, tem desentendimento e falsidade. Competimos desde muito novas por tudo e todos. Enquanto sei que se nos uníssemos, o mundo seria melhor.
É uma menininha sim, que usa roupa azul e laços enormes, que mudou paradigmas ao nascer e que não aceita o que lhe é imposto, não aceita os padrões sem questionar e sem refletir. Que não quer competir com homens e mulheres, apenas quer igualdade e justiça.
Como conquistar a sonhada igualdade e justiça? Agindo diferente. Sendo a diferença. Educando diferente. Não aceitando tudo que vem dos outros sem parar e divagar sobre... não ser só mais um, ser MAIS um que quer mudança em si e no mundo.

It's a Win-Win!

Apenas para esclarecer, só posso expor minha experiência feminina. Entendo que ser do sexo masculino tem suas nuances, tem suas máximas, porém não quero e nem posso entrar neste mérito.

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