Amanhã a Deus pertence.

Hoje decidi desistir. Decidi me abandonar na próxima esquina e não olhar para trás. Ninguém tem culpa, nem mesmo eu. Não tenho culpa, não tenho forças, não tenho olhos para encarar a vida que se desenha a minha frente. 
Hoje eu vou me abandonar, sem remorso e sem piedade. Eu já não caibo em mim. Eu já não me reconheço, não me pertenço. Não sei se caminho para frente, para trás ou se estou dando voltas.
Hoje desisto. Amanhã a Deus pertence. Vou me livrar desta dor que se alastra pelo meu corpo. Vou me livrar deste fardo batizado em meu nome. Vou para não mais voltar. Vou para não mais me perder. E, quem sabe, talvez me encontrar.


AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa, 1932)

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